domingo, 19 de agosto de 2012

Adivinhando.

O que está fazendo? 

Eu deixo de viver para me concentrar melhor naquilo que está fazendo. Não pretendo me distrair de pensar o que está fazendo sem mim. Minha ocupação é imaginar se está lendo neste dia de chuva, com as pernas para cima no sofá. 

Qual será o livro? Estará gostando, com receio de que termine, ou detestando, já questionando se vale a pena continuá-lo. Se bem que em dia de chuva nenhum livro termina, todos os livros começam. 

Qual é a cor de sua solidão? Creme, igual às paredes de sua infância? Você come verdura por obrigação? Ou se acostumou a esquecer o gosto pelo tempero? 

Não atendo o telefone, não vou me dispersar em adivinhar o que está fazendo. Qual roupa que escolheu ou apenas recolheu uma coberta sobre os ombros, como uma afogada ainda traumatizada pelos últimos pensamentos? Será que você está ansiosa ou cansada? Invejo a lenta aproximação da claridade em seu pescoço, fazendo seu perfume subir à superfície com mais fragor. 

Já foi ao banheiro? Você me ensinou a arte de aguardá-la na porta de um banheiro. Eu aprendi a esperá-la. O homem aguardando sua mulher no corredor é sempre um tarado. Ao fingir que não é tarado, termina sendo mais suspeito. 

Na verdade, sou tarado por sinais. Um gato no muro, um carro com alto-falante vendendo frutas, pássaros ofendendo os vizinhos são carteiros de seus pressentimentos. 

Tanto que estou procurando definir se está pensando em mim com a mesma freqüência que vai à cozinha para deixar uma xícara suja. 

Seu pé está gelado, você observa o par de meias e vê que uma unha está arranhando o tecido. Pega uma lixa, irritada que é domingo e o salão está fechado. Uma unha fora do lugar estraga a harmonia. Desiste, e tenta procurar o par de brincos verdes. Brincos ajudam a escutar melhor. É uma aldrava de janela. Você acha graça do que disse, repete: "brinco é uma aldrava de janela". Olha ao lado, não estou. 

Quantas frases eu guardei para um texto só porque você riu? Eu achei que eram importantes porque você riu. Você ri e eu acho importante, eu me acho importante porque me assiste. 

Nesse momento, eu adivinhando o que está fazendo coincide com você imaginando o que estou fazendo. É quase como estar junto. 

Nossas ausências são tão improváveis que se negam ao mesmo tempo. Seu sofrimento é educado, não vulgariza a dor a ponto de expulsá-la. A dor é mais um cachorro pela casa. 

Você mexe no computador, lê alguns e-mails antigos que mandei, caça algo que não revelei, você me corrige, me legenda e não chega a nenhuma conclusão. Eu sou seu silêncio submisso. Um silêncio que não a desespera quando estou longe. Em sua companhia, meu silêncio a atormenta. Eu tenho que estar falando e me explicando para que não me perca. Se não falo, eu a vejo me procurando enervada. "Onde está com a cabeça" "Onde está com a cabeça?" Você ama minha falta de palavras, mas não consegue sustentá-la. 

Confia que meu silêncio a trai. Mas meu silêncio é quando sou mais fiel. Quando não brigo. 

O que anda fazendo que não sei? Será que está alegre e despreocupada, nem aí para qualquer distância? Duvido, sua boca é muito vaidosa para não me mastigar. 

Você me assusta com sua ternura contida. Ela pode explodir com uma canção de sua adolescência, uma conversa com a mãe, uma conta atrasada. Pode explodir sem motivo. 

Você me assusta porque encontra o escândalo unicamente no amor. Fora dele, é discreta e reservada. Fora dele, não a conheço. 

Vive me ameaçando, pressionando, provocando a nadar somente com os pés. Sua alegria é um surto. Sem licença e vergonha. 

Pede para que espalhe a porra pelo seu corpo. Pelos seios. Pela cintura. 

Você me engole com raiva. 

Eu sou seu, só seu. Mesmo quando não estou ao seu lado. 


Fabrício Carpinejar

domingo, 12 de agosto de 2012

Voei.

 Olhava aquela folha em branco, tentava cuspir alguma palavra, mas nada saía. Era claro que ali estavam escondidas poesias arrancadas, se via pelas marcas fundas no papel.
 Trazia os olhos rasos de lágrimas, cheio de mágoas, com a boca tremula e comprimida, reprimindo um choro que ansiava sair, queria transbordar, era uma represa com as comportas fechadas.
 Misturava as lembranças do doce início do amor com as lembranças da partida inexplicável.
 Seus pensamentos flertavam com a loucura, nada mais condizia, a desesperava observar seus vinte e poucos anos e concluir que tinha mais futuro que passado. Não poderia aguentar isso.
  Tentava, em vão, estabelecer o momento em que o amor acabou, em que a música não tocava mais, em que o ponto final foi colocado.
 Talvez o ponto final não tenha sido colocado.
 Seu corpo queimava ao lembrar da ultima noite juntos na praia, no calor desumano amenizado pela brisa do mar e do sabor adocicado do vinho barato.
 Respirou fundo o ar preso daquele quarto como uma tentativa de subir a superfície, se livrar das lembranças, porém a noite parecia ainda mais quente e sua tentativa foi inutilizada.
 Saiu daquele jeito mesmo em direção a rua, cabelos desgrenhados, olhos molhados. Correu algumas ruas sem destino algum e, por instinto, parou em um viaduto qualquer,  gritou sobre ele entre as últimas lágrimas o grito que prendeu durante os últimos meses, desde a morte dele.
 Deixou o grito ecoar pela avenida, sorveu as ultimas lágrimas que percorreram o caminho já conhecido em seu rosto e pulou, lenta numa eternidade.
 Voou doce como um anjo. 
 Para matar aquele amor. 
 Para matar tudo que havia dentro dela. 
 Pulou pra nunca mais voltar. 
 Voou para o recomeço.